sexta-feira, 14 de novembro de 2014

bauci

Depois de marchar por sete dias através das matas, quem vai a Bauci não percebe que já chegou. As finas andas que se elevam do solo a grande distância uma da outra e que se perdem acima das nuvens sustentam a cidade. Sobe-se por escadas. Os habitantes raramente são vistos em terra: têm todo o necessário lá em cima e preferem não descer. Nenhuma parte da cidade toca o solo exceto as longas pernas de flamingo nas quais ela se apóia, e, nos dias luminosos, uma sombra diáfana e angulosa que se reflete na folhagem.
Há três hipóteses a respeito dos habitantes de Bauci: que odeiam a terra; que a respeitam a ponto de evitar qualquer contato; que a amam da forma que era antes de existirem e com binóculos e telescópios apontados para baixo não se cansam de examiná-la, folha por folha, pedra por pedra, formiga por formiga, contemplando fascinados a própria ausência.

CALVINO, Ítalo. As cidades Invisíveis. Tradução de Diogo Mainardi. São Paulo: Cia das Letras, 1990


Alisson da Silva Pozzer


Larissa de Oliveira dos Passos


Angélica Galiotto Salvador


Angélica Dalcin Klinger Severo

Emanuele Diniz Oliveira

ercília


Em Ercília, para estabelecer as ligações que orientam a vida da cidade, os habitantes estendem fios entre as arestas das casas, brancos ou pretos ou cinza ou pretos-e-brancos, de acordo com as relações de parentesco, troca, autoridade, representação. Quando os fios são tantos que não se pode mais atravessar, os habitantes vão embora: as casas são desmontadas; restam apenas os fios e os sustentáculos dos fios.
Do costado de um morro, acampados com os móveis de casa, os prófugos de Ercília olham para o enredo de fios estendidos e os postes que se elevam na planície. Aquela continua a ser a cidade de Ercília, e eles não são nada.
Reconstroem Ercília em outro lugar. Tecem com os fios uma figura semelhante, mas gostariam que fosse mais complicada e ao mesmo tempo mais regular do que a outra. Depois a abandonam e transferem-se juntamente com as casas para ainda mais longe.

Deste modo, viajando-se no território de Ercília, depara-se com as ruínas de cidades abandonadas, sem as muralhas que não duram, sem os ossos dos mortos que rolam com o vento: teias de aranha de relações intricadas à procura de uma forma.

CALVINO, Ítalo. As cidades Invisíveis. Tradução de Diogo Mainardi. São Paulo: Cia das Letras, 1990

Fernanda Palandi


Fabiano José Zini


Natália Peruzzo

otávia


Se quiserem acreditar, ótimo. Agora contarei como é feita Otávia, cidade-teia-de-aranha.Existe um precipício no meio de duas montanhas escarpadas: a cidade fica no vazio, ligada aos dois cumes por fios e correntes e passarelas. Caminha-se em trilhos de madeira, atentando para não enfiar o pé nos intervalos, ou agarra-se aos fios de cânhamo.Abaixo não há nada por centenas e centenas de metros: passam algumas nuvens; mais abaixo entrevê-se o fundo do desfiladeiro.
Essa é a base da cidade: uma rede que serve de passagem e sustentáculo. Todo o resto, em vez de se elevar, está pendurado para baixo: escadas de corda, redes, casas em forma de saco, varais, terraços em forma de navetas, odres de água, bicos de gás, assadeiras, cestos pendurados com barbantes, monta-cargas, chuveiros, trapézios e anéis para jogos, teleféricos, lampadários, vasos com plantas de folhagem pendente.

Suspensa sobre o abismo, a vida dos habitantes de Otávia é menos incerta que a de outras cidades. Sabem que a rede não resistirá mais que isso.

CALVINO, Ítalo. As cidades Invisíveis. Tradução de Diogo Mainardi. São Paulo: Cia das Letras, 1990


Henrique Oss Moré

Francine Colombo Pozzer

Luiza Bertoni


Édipo de Campos de Lima

armila


Ignoro se Armila é dessa maneira por ser inacabada ou demolida, se por trás dela existe um feitiço ou um mero capricho. O fato é que não há paredes, nem telhados, nem pavimentos: não há nada que faça com que se pareça com uma cidade, exceto os encanamentos de água, que sobem verticalmente nos lugares em que deveria haver casas e ramificam-se onde deveria haver andares: uma floresta de tubos que terminam em torneiras, chuveiros, sifões, registros. A céu aberto, alvejam lavabos ou banheiras ou outras peças de mármore, como frutas tardias que permanecem penduradas nos galhos. Dir-se-ia que os encanadores concluíram o seu trabalho e foram embora antes da chegada dos pedreiros; ou então as suas instalações, indestrutíveis, haviam resistido a uma catástrofe, terremoto ou corrosão de cupins.
Abandonada antes ou depois de ser habitada, não se pode dizer que Armila seja deserta. A qualquer hora do dia, levantando os olhos através dos encanamentos, não é raro entrever uma ou mais jovens mulheres, esbeltas, de estatura não elevada, estendidas ao sol dentro das banheiras, arqueadas debaixo dos chuveiros suspensos no vazio, fazendo abluções, ou que se enxugam, ou que se perfumam, ou que penteiam os longos cabelos diante do espelho. Ao sol, brilham os filetes de água despejados pelos chuveiros, os jatos das torneiras, os jorros, os borrifos, a espuma nas esponjas.

A explicação a que cheguei é a seguinte: os cursos de água canalizados nos encanamentos de Armila ainda permanecem sob o domínio de ninfas e náiades. Habituadas a percorrer as veias subterrâneas, encontram facilidade em avançar pelo novo reino aquático, irromper nas fontes, descobrir novos espelhos, novos jogos, novas maneiras de desfrutar a água. Pode ser que a invasão delas tenha afastado os homens, ou pode ser que Armila tenha sido construída pelos homens como oferta para cativar a benevolência das ninfas ofendidas pela violação das águas. Seja como for, agora parecem contentes, essas moças: cantam de manhã.

CALVINO, Ítalo. As cidades Invisíveis. Tradução de Diogo Mainardi. São Paulo: Cia das Letras, 1990

Jaqueline Pereira Magnus

Juliana Siqueira

 Luana Dias Fernandes


Raquel Vanessa de Oliveira

anastácia

A três dias de distância, caminhando em direção ao sul, encontra-se Anastácia, cidade banhada por canais concêntricos e sobrevoada por pipas.
 Eu devia enumerar as mercadorias que aqui se compram a preços vantajosos: ágata ônix crisópraso e outras variedades de calcedônia; deveria louvar a carne do faisão dourado que aqui se cozinha na lenha seca da cerejeira e se salpica com muito orégano; falar das mulheres que vi tomar banho no tanque de um jardim e que às vezes convidam – diz-se – o viajante a despir-se com elas e persegui-las dentro da água. Mas com essas notícias não falaria da verdadeira essência da cidade: porque enquanto a descrição de Anastácia desperta uma série de desejos que deverão ser reprimidos, quem se encontra numa manhã no centro de Anastácia será circundado por desejos que se despertam simultaneamente.
A cidade aparece como um todo no qual nenhum desejo é desperdiçado e do qual você faz parte, e, uma vez aqui se goza tudo que não se goza em outros lugares, não resta nada além de residir nesse desejo e se satisfazer.
Anastácia, cidade enganosa, tem um poder, que às vezes se diz maligno e outras vezes benigno: se você trabalha oito horas por dia como de ágatas crisóprasos, a fadiga que dá forma aos seus desejos  toma dos desejos a sua forma, e você acha que está se divertindo em Anastácia quando não passa de seu escravo.

CALVINO, Ítalo. As cidades Invisíveis. Tradução de Diogo Mainardi. São Paulo: Cia das Letras, 1990.


Mateus de Oliveira Faustino

Leandro Francisco Machado

Jackson Luis Martini Filho

pirra

Por longo tempo, Pirra foi para mim uma cidade encastelada nas encostas de um golfo, com amplas janelas e torres, fechada como uma taça, com uma praça em seu centro. Nunca a tinha visto. Era uma das tantas cidades que nunca visitara, que imaginava somente a partir do nome: Eufrásia, Odila, Margara, Getúlia. Pirra era uma delas, diferente de todas as outras, assim como cada uma delas era inconfundível para os olhos da minha mente.
Chegou o dia em que as minhas viagens me conduziram a Pirra. Logo que coloquei os pés na cidade, tudo o que imaginava foi esquecido; Pirra tornara-se aquilo que é Pirra; e imaginei que sempre soubera que a cidade não tinha vista para o mar, escondido atrás de uma duna baixa e ondulada; que as suas ruas correm em linha reta; que as casas são reagrupadas em intervalos, não altas, e são separadas por descampados de depósitos de madeira e serrarias; que o vento move os cataventos das bombas hidráulicas. Daquele momento em diante, o nome Pirra evoca essa vista, essa luz, esse zumbido, esse ar no qual paira uma poeira amarelada: é evidente que significa isto e que não podia significar mais nada.

A minha mente continua a conter um grande número de cidades que não vi e não verei, nomes que trazem consigo uma figura ou fragmento ou ofuscação de figura imaginada: Getúlia, Olida, Eufrásia, Margara. A cidade sobre o golfo também está sempre lá, com a praça fechada em torno do poço, mas não posso mais chamá-la com um nome, nem recordar como pude dar-lhe um nome que significa algo totalmente diferente.


CALVINO, Ítalo. As cidades Invisíveis. Tradução de Diogo Mainardi. São Paulo: Cia das Letras, 1990.


Felipe Turatti


Maykeli da Siilva


 Iuri Martins Marques


Valdeci Antônio da Silva


Ismael Possi

filide

Ao chegar a Fílide, tem-se o prazer de observar quantas pontes diferentes entre si atravessam os canais: pontes arqueadas, cobertas, sobre pilares, sobre barcos, suspensas, com os parapeitos perfurados; quantas variedades de janelas apresentam-se diante duas ruas: bífores, mouriscas, lanceoladas, ogivais, com meias-luas e florões sobrepostos; quantas espécies de pavimento cobrem o chão: de pedregulhos, de lajotas, de saibro, de pastilhas brancas e azuis. Em todos os pontos, a cidade oferece surpresas para os olhos: um cesto de alcaparras que surge na muralha da fortaleza, as estátuas de três rainhas numa mísula, uma cúpula em forma de cebola com três pequenas cebolas introduzidas em sua extremidade. “Feliz é aquele que todos os dias tem Fílide ao alcance dos olhos e nunca acaba de ver as coisas que ela contém”, exclama-se, triste por ter de deixar a cidade depois de tê-la olhado apenas de relance.
Sucede, no entanto, de permanecer em Fílide e passar ali o resto dos dias. A cidade logo se desbota, apagam-se os florões, as estátuas sobre as mísulas, as cúpulas. Como todos os habitantes de Fílide, anda-se por linhas em ziguezague de uma rua para a outra, distingue-se entre zonas de sol e zonas de sombra, uma porta aqui, uma escada ali, um banco para apoiar o cesto, uma valeta onde tropeça quem não toma cuidado. Todo o resto da cidade é invisível. Fílide é um espaço em que os percursos são traçados entre pontos suspensos no vazio, o caminho mais curto para alcançar a tenda daquele comerciante evitando o guichê daquele credor. Os passos seguem não o que se encontra fora do alcance dos olhos mas dentro, sepultado e cancelado: se entre dois pórticos um continua a parecer mais alegre é porque trinta anos atrás ali passava uma moça de largas mangas bordadas, ou então é apenas porque a uma certa hora do dia recebe uma luz como a daquele pórtico de cuja localização não se recorda mais.

Milhões de olhos erguem-se diante de janelas pontes alcaparras e é como se examinassem uma página em branco. Muitas são as cidades como Fílide que evitam os olhares, exceto quando pegas de surpresa.

CALVINO, Ítalo. As cidades Invisíveis. Tradução de Diogo Mainardi. São Paulo: Cia das Letras, 1990

Caroline Vieira Sartori

Phillip de Oliveira Boff

Priscila Raber